A passibilidade do impassível: a relação entre Deus e o sofrimento humano

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12.07.2024 - 18:00:00 | 5 minutos de leitura

A passibilidade do impassível: a relação entre Deus e o sofrimento humano

Uma análise mais ou menos realista da realidade humana é capaz de identificar que há certa razão nas palavras do salmista: “pode durar setenta anos nossa vida, os mais fortes talvez cheguem a oitenta; a maior parte é ilusão e sofrimento: passam depressa e também nós assim passamos”. O autor sagrado, em sintonia com a tradição sapiencial hebraica, atribui a ilusão e o sofrimento especialmente à contingencialidade da existência, diante da qual é inútil qualquer tipo de apego terreno; mas, mais do que isso, os associa à própria condição de padecimento, característica de toda e qualquer existência.

O sofrimento existe e, por mais que o busquemos evitar, em algum momento, ele fará parte do repertório de nossas vidas. No horizonte da teologia, surge um relevante questionamento: qual é a posição de Deus diante do sofrimento do homem? Seria ele indiferente à dor e ao sofrimento humanos? Como afirmar em concomitância a bondade e a onipotência de Deus diante de um mundo marcado por tantos padecimentos? Se Deus tudo pode, porque não intervém assertivamente no sofrimento dos homens? Deus seria, de fato, “bom”, ou, ao contrário, estaria “aliado a um tribunal criminoso que erige a desordem como lei” (Sl 94, 20)?

É inequívoco que a ideia que temos de Deus far-nos-á chegar a diferentes respostas a essa aporia. Uma compreensão teológica mais tradicional costuma atrelar-se à ideia da impassibilidade essencial de Deus, afirmando reiteradamente seu caráter plenipotenciário. Se Deus tudo pode, nada pode sofrer! Endossa essa compreensão um recurso à filosofia clássica, particularmente ao “Deus” (sabemos que este não é o sentido mais originário do conceito, mas uma derivação) da Metaphysica: o motor que tudo move, mas que não é movido por nada; o não-causado que tudo causa (a causa eficiente de tudo que não é causa final de cada); o ser necessário que não experimenta contingência, mas diante de quem tudo é contingente. De fato, não se pode cogitar que esse Deus sofra!

O teólogo luterano Jürgen Moltmann, falecido há poucos dias, oferece uma perspectiva interessante a partir da qual é possível postular um novo estado de resposta a esse problema. Para ele, todas as vezes nas quais Deus é pensado a partir de uma ênfase na figura do “pai”, em sintonia com toda a carga semântica que este verbete carrega em uma sociedade tradicionalmente patriarcal, é natural que se pense na impassibilidade divina. No entanto, quando se pensa Deus a partir do “Abbá” de Jesus, entende-se que é “Pai”, porque tem “Filho”, e porque estabelece com seu Filho uma relação que, inclusive, poderia ser entendida, absurdamente, como maternal.

Nessa outra compreensão da ideia de Deus, se imposta o axioma do pathos divino, em detrimento do antigo postulado da apatia divina. Assim, para Moltmann, “é impossível que o Pai permaneça indiferente à paixão e morte de seu Filho”, o que faz com que se entenda a onipotência divina não como uma onipotência indiferente, mas como uma onipotência para sofrer. Para ele, “se Deus fosse incapaz de sofrer em qualquer aspecto e, portanto, em sentido absoluto, então ele seria também incapaz de amar. Se o amor é aceitação do outro sem considerar o seu próprio bem-estar, então, ele contém em si mesmo a possibilidade da compaixão e da liberdade de suportar a alteridade do outro. A incapacidade de sofrer, nesse sentido, contradiria a afirmação cristã fundamental de que ‘Deus é amor’, com o qual se rompeu com o encanto da doutrina aristotélica de Deus”.

Bento XVI, na Spe Salvi, ao citar a célebre frase de S. Bernardo “Impassibilis est Deus, sed non incompassibilis”, não assume um posicionamento patripassionista - como faz Moltmann, sob certo aspecto -, mas admite a possibilidade do compadecimento de Deus. Diz o Pontífice que “a fé cristã mostrou-nos que verdade, justiça, amor não são simplesmente ideais, mas realidades de imensa densidade. Com efeito, mostrou-nos que Deus – a Verdade e o Amor em pessoa – quis sofrer por nós e conosco [...] Deus não pode padecer, mas pode-se compadecer. O homem tem para Deus um valor tão grande que Ele mesmo Se fez homem para poder padecer com o homem, de modo muito real, na carne e no sangue, como nos é demonstrado na narração da Paixão de Jesus. A partir de lá entrou em todo o sofrimento humano alguém que partilha o sofrimento e a sua suportação; a partir de lá se propaga em todo o sofrimento a con-solatio, a consolação do amor solidário de Deus, surgindo assim a estrela da esperança”.

De todas as formas, quer seja na afirmação da passibilidade, quer seja da não incompassibilidade, o que se deve ter presente é que Deus, por sua própria ontologia, não se faz indiferente à existência humana, mas se faz presente, compadecendo-se dela e fazendo-lhe caso. Ademais, a constatação de que o próprio Deus sofreu sacraliza a realidade do próprio sofrimento, sendo ele um meio de chegar a Deus.

Os sofrimentos existem e continuarão existindo, mas, diante de todas as adversidades e desventuras da vida, é necessário ter clara a compreensão da presença constante de Deus, que também experimentou em sua carne o sofrimento, e que dá-nos a força de que necessitamos para, com Ele e como Ele, sofrermos de modo fértil, oblativo, fazendo-o com amor e por amor.

Fonte: P. Renato Vieira Lima, SCJ
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